quarta-feira, 28 de maio de 2014

A Arte de ser Avó



Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...

Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.


E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...

No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...


Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...


(O brasileiro perplexo, 1964.)

Rachel de Queiroz

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Do amor emocional ao amor compaixão

"O coração é somente para se oferecer com uma lágrima e um canto". (R. Tagore)

Precisamos ser amados não apenas pelo que somos, mas apesar do que somos. O que no fundo todos ansiamos é por um amor que sabe respeitar o nosso tempo, um amor que nos aceita sem julgamento. Que vê o essencial em nós, o nosso ser mais profundo. É desse amor compassivo e incondicional que a humanidade mais precisa e que ao mesmo tempo ela mais tem medo. Porque esse amor revela ao mesmo tempo nossas fragilidades e nossa luz maior. Esse amor cura a alma, conciliando-nos com todos os seres, a começar por nós, conciliando-nos com nossas próprias oposições internas.

Esse amor não é um amor humano, esse amor é um amor da alma que se reconectou com o seu espírito, com Deus. O amor humano, como conhecemos, é um amor de afinidades e necessidades. É um amor de clã, um amor emocional e condicionado. Mas o amor da nossa alma, quando religada, é pura energia, faz-nos ter o cuidado, o respeito e a compreensão para com todos os seres. Só o coração sabe o que outro coração precisa. O coração sabe antes. Nele está nossa sabedoria adquirida através de muitas vidas.

O amor é a força de coesão do universo. Sem a energia do amor tudo se desintegraria, das famílias e organismos às galáxias. Não basta amar, é preciso ser ativo no amor, senão o mal -a força desintegradora- vai ganhando terreno. Se eu abro meu coração, como a uma janela, a luz entra; se eu fecho, a treva entra e domina. O propósito maior das almas nesse universo é a integração. E elas fazem isso a cada vez que resistem a tudo o que não é amor, que as separam da comunhão com toda a vida.

Na nossa sociedade, é comum quando a pessoa está fazendo o bem, ela estar indo contra algum mal. Mas esse ato de ir contra, abre a porta para aquilo que se quer evitar -  o próprio mal. O ato de lutar contra as injustiças, o que está errado no mundo, muitas vezes reforça-os, ao invés de enfraquecê-los e resolvê-los. O objetivo não é vencer, é se abrir. É cultivar as virtudes da alma, a vida simples da alma. O amor é conciliador. Madre Tereza dizia para não chamá-la para atos contra a guerra, mas para chamá-la a presença de atos a favor da paz, lá ela estaria.

O amor brilha como o sol, abre-se como uma flor e sorri como uma criança. Ser amor e luz é uma escolha de cada momento. Mais importante que um bom lugar fora é um bom lugar dentro. Nós temos a chave da nossa própria prisão, que criamos para nós. Quando a alma se fecha ao amor, quando o ego prevalece, é que surge a dor. Amar o outro até que ele perceba o amor como sua natureza intrínseca. A partir desse momento nos tornamos um. O amor é igual à essência. É a própria vida da essência.  

O amor vai abrindo as portas, uma a uma, que devem ser abertas no seu tempo, que é a sincronicidade e a harmonia. Não estamos aqui para resolver a vida, mas para  deixar que ela como uma onda flua através de nós. A verdadeira liberdade está na unidade. Eu preciso deixar de me sentir diferente dos outros. Incluo a família humana e a família divina no mesmo amor. A tarefa material e a tarefa espiritual na mesma dedicação.  

Não é mais tempo de ser eremita, nem de cultuar deuses nem mestres fora de nós. Nem tempo de exclusividades amorosas, a exemplo de só amar minha família e seres afins. Hoje os seres de luz somos nós, que vivemos uma vida normal sobre a Terra, semelhante a todos os seres, queremos parecer semelhante e ajudar o outro para que ele perceba isso, nossa irmandade na luz e no amor. É ilusão achar que existe um amor perfeito, um lugar ou trabalho perfeito fora de nós. Nós que tornamos perfeitos, com o nosso amor e aceitação da convivência dos contrários em tudo.   

Os mundos foram separados quando o ser humano esqueceu quem é, sua origem. Quando esqueceu seu papel arquetípico, o que está fazendo aqui. É na medida da conscientização e da individuação do humano que céu e Terra se unem novamente dentro de nós. Deixar o amor soar em todo o instrumento que somos. O que todo ser precisa de verdade é de amor. As pessoas só vão perceber que precisam é de amor quando forem amadas. E conhecendo o amor, elas aprenderão a amar e serão nutridas, e nutrirão, e nada faltará a ninguém. É quando o coração se fecha que a pessoa se torna infeliz.

Não perder nunca de vista o meu ser e o ser das coisas. Viver no coração é uma escolha de cada momento, um estado de consciência que só existe no momento presente e que me conecta com a essência de tudo a minha volta. Para isso deve existir uma determinação, por seguir na luz cultivando o amor. Para não ser dominada pela vida mental e emocional do ego, mas ser amor e luz. Para poder sintonizar com a perfeição dentro do outro. Não é mais ter razão, estar certa, ter o conhecimento do bem e do mal, o que importa agora é amar incondicionalmente. Não podemos mudar as ações dos outros, mas podemos mudar todas as nossas reações e escolher como queremos viver.

Nos tempos atuais, não basta ensinar o que é correto, mas amar, apesar de tudo, de todos os erros e imperfeições da humanidade. Estar diante do outro apenas, como alma, nada mais importa, não há mais tempo sobre a Terra. O que importa é a intenção e a disposição de amar e semear o bem. A alma não precisa de muitos conhecimentos externos, ela precisa ser simples, despojada, aberta ao outro, disposta a servir. Com coração de criança, amarmos com o amor incondicional da mãe, todos os seres.

por Mariana M. Martins